Em todas as épocas, os homens procuraram reunir todo o conhecimento e experiência de seus dias num conjunto compacto que explicaria a relação deles com o universo e suas possibilidades nele. De uma forma simples, nunca obtiveram êxito. A unidade das coisas não é perceptível à mente comum num estado comum de consciência. Desviada pelas incontáveis e contraditórias orientações da natureza humana, a mente comum reflete um mundo tão múltiplo e confuso quanto o próprio homem. Uma unidade, um modelo, um significado que tudo engloba - se ele existe - poderia apenas ser discernido ou experimentado por um tipo diferente de mente, num diferente estado de consciência. Seria perceptível apenas por uma mente que tivesse ela mesma se tornado unificada.
Que unidade, por exemplo, poderia ser percebida mesmo pelo mais brilhante físico, filósofo ou teólogo que, enquanto viaja distraidamente em seu assento, zanga-se ao receber um troco inferior ao esperado, não se dá conta do quanto irrita sua mulher e, de maneira geral, permanece sujeito à trivial cegueira da mente comum que trabalha com sua habitual falta de atenção? Qualquer unidade alcançada em tal estado poderia existir apenas em sua imaginação.
Assim, a tentativa de reunir todo o conhecimento num único conjunto sempre esteve ligada à procura de um novo estado de consciência. E ela não teria significado e seria fútil se estivesse desconectada de tal busca.
Talvez pudéssemos dizer que as poucas tentativas que obtiveram êxito e chegaram até nós mostram sinais de serem unicamente produtos secundários de tal busca, quando ela alcançou sucesso. Os únicos convincentes modelos do universo em existência são aqueles deixados por homens que evidentemente alcançaram uma relação com o mundo e sua consciência dele, completamente diferente daquela pertencente à experiência comum.
Tais modelos do universo devem não apenas apresentar a forma interna e a estrutura deste, mas revelar também a relação do homem com ele, seu momento presente nele e seu possível destino dentro dele. Nesse sentido, algumas catedrais góticas são completos modelos do universo, enquanto que um planetário, à parte toda sua beleza, conhecimento e exatidão, não o é. Ele omite por completo o homem. Naturalmente, a diferença reside no fato de que as catedrais foram direta ou indiretamente projetadas por homens que pertenciam a escolas para o alcance de estados mais elevados de consciência e que tinham a vantagem da experiência adquirida nessas escolas, enquanto que os projetistas do planetário são cientistas e técnicos que, embora inteligentes e qualificados o bastante em suas áreas, não podem pretender um conhecimento particular das potencialidades da máquina humana com a qual têm que trabalhar.
Na verdade, se possuíssemos determinadas chaves para sua interpretação, o fato mais surpreendente com respeito a esses antigos ‘modelos do universo’ que surgem em épocas, continentes e culturas bastante separadas entre si seria precisamente a sua similaridade. Tanto que esse seria um bom argumento para defender a idéia de que uma consciência de ordem superior sempre revela a mesma verdade, baseando-se unicamente no estudo comparativo de outros modelos do universo existentes e que parecem derivados dela - por exemplo, a Catedral de Chartres, a Grande Esfinge, o Novo Testamento, a Divina Comédia ou certos diagramas legados pelos alquimistas do século XVII, os desenhistas das cartas do Tarô e os pintores de ícones russos e estandartes tibetanos.
Uma das principais dificuldades no caminho de tais estudos comparativos reside no fato de que todos esses modelos estão expressos em diferentes linguagens, e isso, para a mente comum e despreparada, implica que linguagens diferentes expressem verdades diferentes. Esta é, na verdade, uma ilusão característica do estado em que o homem se encontra. Mesmo uma pequena melhoria em sua percepção revela, pelo contrário, que a mesma linguagem, a mesma formulação pode encerrar compreensões diametralmente opostas, enquanto que linguagens e formulações que à primeira vista nada têm em comum podem de fato se referir à mesma coisa. Por exemplo, embora as palavras ‘honra’, ‘amor’ e ‘democracia’ sejam universalmente usadas, é quase impossível encontrarmos duas pessoas que lhes atribuam o mesmo significado. Ou seja, diferentes usos da mesma palavra podem ter significados bastante incompatíveis. Por outro lado - por mais estranho que possa parecer tal pensamento -, a Catedral de Chartres, um maço de cartas de tarô e certos bronzes de divindades tibetanas profusamente armadas e com muitas cabeças são de fato formulações exatas das mesmas idéias; isto é, são exatamente compatíveis.
Faz-se assim necessário considerar neste ponto a questão da linguagem em relação com a construção de um modelo do universo, do delineamento de um padrão de unidade. Fundamentalmente, a linguagem ou forma de expressão está dividida de acordo com o quanto ela recorre a uma ou outra função do homem, familiar ou potencial. Uma determinada idéia pode ser expressa, por exemplo, em linguagem filosófica ou científica, apelando à função intelectual do homem; pode ser expressa em linguagem religiosa ou poética, o que apela à sua função emocional; pode também ser expressa em rituais e danças, a fim de apelar à sua função motora; e pode até mesmo ser expressa por meio de aromas ou posturas físicas, para apelar à sua fisiologia instintiva.
Naturalmente, os melhores ‘modelos do universo’ criados pelas escolas no passado, aspiravam combinar tais formulações do que desejavam expressar em muitas linguagens, de modo a afetar muitas ou todas as funções ao mesmo tempo e, assim, compensar parcialmente a contradição entre os diferentes aspectos da natureza do homem, à qual já nos referimos. Na catedral, por exemplo, foram combinadas com êxito as linguagens da poesia, postura, ritual, música, aroma, arte e arquitetura; e algo similar parece ter sido feito nas dramáticas representações dos mistérios de Elêusis. Em outros casos ainda, como na Grande Pirâmide, por exemplo, a linguagem da arquitetura parece ter sido usada não apenas pelo simbolismo de sua forma, mas com o intuito de criar na pessoa que atravessasse a construção num determinado sentido, séries definidas de choques e impressões emocionais, as quais continham significações em si mesmas e eram calculadas para poder revelar a real natureza da pessoa exposta a elas.
Tudo isso se refere ao uso objetivo da linguagem, isto é, ao uso de uma linguagem definida para evocar uma idéia definida com conhecimento prévio do efeito que se criará, da função que será afetada e do tipo de pessoa que responderá a ela. Outra vez temos que admitir que tal uso objetivo da linguagem não é conhecido ordinariamente - exceto, talvez, numa forma elementar de propaganda - e cujo mais elevado uso pode apenas se derivar, direta ou indiretamente, do conhecimento adquirido em estados de consciência mais elevados.
Paralelas a essas linguagens reconhecíveis pelo homem por meio de suas funções comuns, existem outras formas de linguagem que procedem e que apelam a funções supra-normais, isto é, funções que podem desenvolver-se no homem, mas das quais ele ordinariamente não desfruta. Há, por exemplo, a linguagem de uma função emocional superior na qual a formulação tem o poder de evocar um grande número de significados, sejam eles simultâneos ou sucessivos. Algumas das mais belas poesias, cuja profundidade jamais se esgotará e que sempre revelam algo de novo quando lidas, nunca serão plenamente compreendidas e podem pertencer a essa categoria. Mais evidentemente, os Evangelhos estão escritos em tal linguagem e, por essa razão, cada versículo evoca a uma centena de homens uma centena de significados diferentes, mas nunca contraditórios.
Na linguagem de uma função emocional superior - e, em particular, na função intelectual superior -, os símbolos desempenham um papel muito importante. Estes se baseiam na compreensão de verdadeiras analogias entre um cosmos maior e outro menor, onde uma forma, função ou lei num cosmos é utilizada para insinuar formas, funções e leis correspondentes em outros cosmos. Essa compreensão pertence exclusivamente a uma função superior ou potencial do homem e deve produzir sempre uma sensação de confusão e até de frustração quando pretendemos alcançá-la com funções comuns, tais como são as do pensamento lógico.
No entanto, graus mais elevados de linguagem emocional não requerem nenhuma expressão externa e, por isso mesmo, não podem ser mal interpretados.
Essa digressão sobre a linguagem é necessária para explicar em parte a forma do presente livro. Porque este também, devemos admiti-lo, pretende ser um ‘modelo do universo’ - isto é, um conjunto ou um desenho do conhecimento de que dispomos, disposto de forma a demonstrar um todo ou uma unidade cósmica.
Está certamente envolto em linguagem científica e por isso se dirige primordialmente à função intelectual e a pessoas nas quais tal função predomina. Na verdade, o autor reconhece que essa linguagem é a mais lenta, a mais tediosa e, em alguns sentidos, a mais difícil de seguir de todas as linguagens. A da poesia, dos mitos e dos contos de fadas, por exemplo, penetraria mais profundamente e poderia levar as idéias com muito mais força e fluidez à compreensão emocional do leitor. Talvez mais tarde seja possível uma tentativa nessa direção.
Ao mesmo tempo, o leitor acostumado à linguagem e pensamento científicos encontrará dificuldades. O uso livre que se faz da analogia em todo o livro poderá parecer-lhe uma incongruência. E, para seu proveito, é melhor dar aqui a explicação mais completa possível e de antemão esboçar um sincero reconhecimento dos defeitos desse método.
Uma das principais características do pensamento moderno é uma contradição entre o modo que o homem olha para o mundo externo, fora de si mesmo, e o modo como ele olha o mundo interno, dentro dele.
Com relação ao mundo externo, ele não podia ser mais objetivo, mais convincente da aplicação universal das leis, expressas por fórmulas e consistentemente mensuráveis em seus efeitos. Nesse campo, qualquer crença que traga dúvidas ao princípio de mensurabilidade, por exemplo, ou qualquer crença na inteligência e consciência de seres numa escala maior que a do homem estão em perigo de serem olhadas como superstição.
Com relação ao mundo interno, por outro lado, o homem raramente foi mais subjetivo, mais convencido da validade de seus caprichos, imaginação, esperança e medo e pouco disposto a admitir que seu mundo interno está sujeito a leis, pura e simplesmente. A maior parte da moderna psicologia, e especialmente a psicanálise, está baseada nessa subjetividade. E, nesse campo, é precisamente a crença em leis e mensurabilidade - por exemplo, a crença de que muito da psicologia humana é o resultado de calculadas interações de tipos, ou a crença de que o mundo interno do homem está sujeito a leis similares àquelas que governam os mundos astronômicos ou microscópicos - que é chamada superstição.
Houve períodos em que a inteligência foi vista como a regra principal em ambos os campos, como, por exemplo, no início da Idade Média. E houve outros períodos em que uma lei imutável era vista como tal, como, por exemplo, no racionalismo do século XVIII. Mas talvez nunca tenha havido um período em que houvessem tão evidentes contradições nas atitudes do homem perante os dois.
Quando encontramos essa contradição no cotidiano, ou seja, quando encontramos um homem que julga o mundo ao redor dele por um padrão e a si e suas ações por outro bastante diferente, tomamos isso como sinal de um ponto de vista primitivo e inculto. E, ainda que essa mesma contradição seja a principal característica do pensamento geral de nossa época, nós a chamamos de iluminação ou emancipação. Não vemos que aí reside a raiz de tanta cegueira, infelicidade, decepção e falência moral, como se fosse um caso individual.
Uma das metas deste livro é precisamente sanar essa contradição - olhar para o homem e sua vida interna do mesmo ponto de vista que olhamos para o universo; e olhar para o universo do mesmo ponto de vista que olhamos para o homem e sua vida interna. Se a tentativa parece superstição, ela deve-se, ao menos em parte, ao tempo, que é o verdadeiro culpado.
Em nossa tentativa de reconciliar o mundo interno e o externo, de qualquer modo, chegamos a uma dificuldade bastante real e que deve ser confrontada. Essa dificuldade está conectada com o problema do reconciliar métodos diferentes de conhecer. O homem tem dois caminhos para estudar o universo. O primeiro é por indução: ele examina um fenômeno, classifica-o e tenta inferir leis e princípios a partir dele. Esse é o método geralmente utilizado pela ciência. O segundo é por dedução: tendo percebido, revelado ou descoberto certas leis gerais e princípios, ele tenta deduzir aplicações dessas leis em vários estudos especializados e na própria vida. Esse é o método geralmente utilizado pela religião. O primeiro método começa com ‘fatos’ e tenta alcançar ‘leis’. O segundo começa com ‘leis’ e tenta alcançar ‘fatos’.
Esses dois métodos pertencem ao trabalho de diferentes funções humanas. O primeiro é o método da mente lógica comum, que está permanentemente disponível para nós. O segundo deriva-se de uma função em potencial no homem, geralmente inativa por falta de energia nervosa de intensidade suficiente e que podemos chamar de uma função mental superior. Essa função, nas raras ocasiões em que atua, revela ao homem leis em ação; ele pode ver o mundo fenomênico como o produto de leis.
Todas as formulações verídicas de leis universais procedem recente ou remotamente do trabalho dessa função superior em algum lugar e em algum homem. Ao mesmo tempo, para a aplicação e a compreensão de leis reveladas no decorrer de grandes espaços de tempo e cultura, quando tal revelação não está disponível, o homem tem de apoiar-se na mente lógica comum.
Isso de fato é reconhecido hoje no pensamento científico. Em sua Natureza do Universo (1950), Fred Hole escreve: “O procedimento em todos os ramos da física, seja na teoria da gravidade de Newton, na do eletromagnetismo de Maxwell, na da relatividade de Einstein ou na do quantum, é o mesmo em sua raiz. Ele consiste de dois passos. O primeiro é supor, por algum tipo de inspiração, um conjunto de equações matemáticas. O segundo é associar aos símbolos empregados nas equações quantidades físicas mensuráveis.”1 A diferença entre essas duas mentes não poderia ter sido melhor colocada.Mas aqui o grande dilema da compreensão humana surge. Essas duas mentes nunca podem compreender-se uma à outra. Há grande diferença de velocidade entre elas. Assim como é impossível, devido às suas diferenças de velocidade, a comunicação entre um camponês caminhando por uma estrada com uma carga de lenha e um automóvel que cruza por ele a cento e oitenta quilômetros por hora, também é impossível a comunicação entre a mente lógica e a mente superior. Para a mente lógica, os traços deixados pela mente superior parecerão arbitrários, supersticiosos, ilógicos e improváveis. Para a mente superior, o trabalho da mente lógica parecerá pesado, desnecessário e fora do assunto tratado.2
De modo comum, essa dificuldade é superada mantendo-se esses dois métodos separados, dando-se a eles diferentes rótulos e diferentes campos de ação. Os livros de religião ou os de matemática superior, que lidam com leis e princípios, abstêm-se de empregar o método indutivo. Livros de ciência, que lidam com acumulações de fatos observados, abstêm-se de presumir leis adiantadamente. E, desde que diferentes pessoas escrevam e leiam livros de uma espécie ou outra, ou que as mesmas pessoas os leiam com partes bastante diferentes de suas mentes, os dois métodos conseguem conviver juntos sem muito atrito.
No presente livro, contudo, os dois métodos são empregados simultaneamente. Certos grandes princípios e leis do universo, que encontraram expressão em diferentes países e em todas as épocas e que, de tempos em tempos, são redescobertos por homens individuais por meio do trabalho momentâneo de uma função superior, têm aqui sua ênfase. Deles se fazem deduções que descendem do mundo fenomênico comumente acessível a nós principalmente pelo método analítico. Ao mesmo tempo, faz-se uma tentativa de estudar e classificar ‘fatos’ e fenômenos a nosso respeito e, por inferência, ordená-los de modo que tais classificações nos conduzam ascendentemente por leis abstratas que descendem do alto.
Pela razão dada acima, que eles derivam de funções diferentes e com velocidades totalmente diferentes, os dois métodos de fato nunca se encontram. Entre deduções admissíveis das leis gerais e inferências admissíveis dos fatos, resta sempre uma zona invisível, onde ambas deveriam unir-se, mas tal união permanece sempre invisível e improvável.
Por essas razões, o autor está pronto a admitir que o projeto do presente livro - que procura reconciliar os dois métodos - talvez seja inviável. Percebe também que uma tentativa dessa ordem envolve inevitavelmente uma espécie de prestidigitação, quase um truque. E também percebe que esse malabarismo não enganará o cientista profissional, ligado exclusivamente ao método lógico.
Ao mesmo tempo, está convencido, por um lado, de que a ciência contemporânea, sem princípios, encaminha-se para uma especulação e um materialismo cada vez mais obtusos; e, por outro lado, que princípios religiosos ou filosóficos, não coordenados com o pensamento científico que caracteriza nossa época, podem hoje suscitar interesse apenas numa minoria. Essa convicção persuade-o a assumir o risco. Aqueles que utilizam exclusivamente o método lógico nunca estarão satisfeitos com os argumentos dados, os quais - admitamos - contêm defeitos lógicos e vazios. Por outro lado, para aqueles que estão dispostos a aceitar os dois métodos, esperamos apresentar provas suficientes que tornem possível a cada leitor tentar ultrapassar por si mesmo o vazio entre o mundo dos fatos cotidianos e o mundo das grandes leis.
Essa tarefa não poderia ser realizada em nenhum livro, nem seria um número maior de fatos ou conhecimento comumente disponíveis para a ciência, seja hoje ou no futuro, o que poderia torná-la possível. Mas, com ajuda e esforço, ela pode ser realizada por cada indivíduo para sua própria satisfação.
Entretanto, para o homem comum, interessado em seu próprio destino mas não particularmente na ciência, podemos apenas dizer num exame mais cuidadoso que ele talvez ache este livro não tão científico quanto parece. A linguagem científica é a linguagem da moda hoje, assim como a linguagem da psicologia era a linguagem da moda há trinta anos, a linguagem passional era a linguagem da época elizabetana e a religiosa era a linguagem da Idade Média. Quando as pessoas são induzidas a comprar creme dental ou cigarros por argumentos e explicações pseudo-científicas, evidentemente isso corresponde de alguma forma à mentalidade da época, e verdades devem também ser expressas cientificamente.
Ao mesmo tempo, isso não sugere que a linguagem científica utilizada é um disfarce, um fingimento ou falsificação. As explanações dadas são, até onde seja possível verificar, bastante corretas e correspondem aos fatos atuais.3 O que se afirma é que os princípios utilizados poderiam, com igual correção, ser aplicados a qualquer outra forma da experiência humana, com resultados de igual ou maior interesse. E são esses princípios que têm importância, mais do que as ciências às quais estão aplicados.
De onde vêm esses princípios? Para responder essa questão, torna-se necessário reconhecer meu débito a um homem e explicar de certa forma como esse débito se originou.
Encontrei Ouspensky pela primeira vez em Londres, em setembro de 1936, quando fazia leituras públicas. Essas ‘conferências’ tratavam de um sistema extraordinário de conhecimento que havia encontrado e que era impossível de comparar-se a qualquer outro que eu já havia conhecido. No entanto, o sistema não era novo; pelo contrário, dizia-se que era muito antigo, que sempre havia existido de forma oculta e que seus sinais de tempos em tempos podiam ser vistos surgindo na superfície da história, de uma forma ou de outra. Ainda que esse sistema explicasse de maneira extraordinária coisas incontáveis a respeito do homem e do universo que até então pareciam inexplicáveis, seu único propósito - como Ouspensky constantemente enfatizava - era auxiliar o homem a despertar para um plano diferente de consciência. Qualquer tentativa de utilizar esse conhecimento com propósitos diferentes ou mais ordinários era descartada ou proibida.
Mas, não obstante a perfeição surpreendente desse ‘sistema’ em si mesmo, ele nunca poderia separar-se por inteiro do ‘ser’ do homem que o expunha: o próprio Ouspensky. Quando alguma outra pessoa tentava explicá-lo, o ‘sistema’ degenerava-se, perdia qualidade de alguma forma. E ainda que ninguém pudesse neutralizar por completo a grande força das mesmas idéias, era claro que o ‘sistema’ não podia estar separado de um homem de certo nível inusitado de consciência e de ser. Somente um homem assim poderia suscitar nos outros as mudanças fundamentais de compreensão e de atitudes necessárias para alcançá-lo.
Esse ‘sistema’, na forma pura e abstrata em que foi originalmente transmitido, foi registrado pelo próprio Ouspensky em Fragmentos de um Ensinamento Desconhecido. Qualquer um que desejasse comparar os princípios originais com as deduções que são feitas aqui deveria ler esse livro, assim poderá julgar por si mesmo se as aplicações e o desenvolvimento das idéias são legítimos ou não. E de fato, de certo ponto de vista, está em seu direito, por assim dizer.
Pessoalmente, sentia-me numa encruzilhada naquela época e, quando encontrei Ouspensky a sós pela primeira vez, em Gwyndyr Road, disse-lhe que era um escritor nato e pedi-lhe conselhos sobre os caminhos que se abriam ante mim. Disse-me então com muita sensatez: “Melhor que você não se comprometa muito, mais tarde podemos encontrar algo para que você escreva”.
Isso era típico da estranha confiança inspirada por Ouspensky, já que me pareceu uma resposta completa para meu problema, ou melhor, senti que não tinha mais porque me preocupar com aquilo, que um peso havia sido tirado de cima de mim. De fato, resultado dessa conversa, durante dez anos não escrevi praticamente nada. Havia demasiadas coisas a fazer. Mas, por fim, Ouspensky cumpriu sua promessa. E a maior parte do presente livro foi escrita nos dois meses que precederam imediatamente a sua morte, em outubro de 1947, como resultado direto do que ele procurava realizar e mostrar nesse tempo. Posteriormente, um segundo livro, que continua onde este acaba, foi escrito após sua morte.
Durante o intervalo de dez anos, Ouspensky expôs de várias formas - teórica, filosófica e prática - todos os diferentes aspectos do ‘sistema’. Quando cheguei, muitos dos que o rodeavam haviam estado estudando dessa forma, procurando penetrar até o resultado indicado por ele durante dez ou quinze anos e estavam capacitados a ajudar um recém-chegado como eu a entender muito do que era e do que não era possível. Infatigavelmente Ouspensky explicava, infatigavelmente nos mostrava nossas ilusões e nos sinalizava o caminho - ainda que tão sutilmente, que, se alguém não estivesse preparado para compreender, suas lições passavam despercebidas e somente anos depois podia-se recordar o incidente e dar-se conta então do que ele havia estado demonstrando. Métodos mais violentos podem ser possíveis, mas, em certas ocasiões, eles podem deixar feridas difíceis de cicatrizar, mesmo com o tempo.
Ouspensky nunca trabalhou para o instante. Poderíamos dizer com muita propriedade que não trabalhou nem mesmo para o tempo - trabalhou para a recorrência. Mas isso exige muita explicação. Em todo caso, era perfeitamente evidente que trabalhava e planejava com um sentido de tempo completamente diferente daquele que nós tínhamos, ainda que àqueles que o solicitavam impacientes, querendo alcançar resultados mais rápidos, ele sempre dissesse: “Não, o tempo é um fator. Não podemos deixá-lo de lado”.
Assim se passaram os anos. E, ainda que em verdade muito tivesse sido alcançado, com freqüência nos parecia que Ouspensky estava muito à frente de nós, que ele tinha algo do qual carecíamos, algo que para ele tornava práticas certas possibilidades que, para nós, continuavam sendo teóricas e que, à parte todas as suas explicações, não descobríamos como alcançar. Alguma chave essencial parecia haver-se perdido. Posteriormente, essa chave apareceu. Mas isso é outro assunto.
Ouspensky foi para a América durante a guerra. Em conexão com esse estranho desenvolvimento de possibilidades que ficou conhecido por ‘conferencias de Ouspensky’, lembro-me de como em Nova York, por volta de 1944, ele nos deu uma tarefa e disse que ela seria interessante para nós. Consistia em ‘classificar as ciências’ de acordo com os princípios que tinham sido expostos por meio do sistema; classificá-las ‘de acordo com o mundo que elas estudavam’. Referiu-se à última classificação das ciências - a de Herbert Spencer - e disse que, ainda que interessante, ela não era satisfatória nem do nosso ponto de vista, nem do ponto de vista de nosso tempo. Escreveu também a seus amigos na Inglaterra sobre essa tarefa. Uns cinco anos depois, quando o presente livro estava perto de ser terminado, percebi que ele era de fato uma resposta à tarefa de Ouspensky.
Ele voltou à Inglaterra em janeiro de 1947. Estava velho, doente e muito fraco. Mas também tinha algo a mais. Era um homem diferente. Muito da personalidade vigorosa, extraordinária e brilhante, aquela que seus amigos conheciam e da qual desfrutaram por tantos anos, tinha ficado para trás, e muitos daqueles que o encontraram novamente ficaram chocados e perplexos, enquanto, para alguns outros, foi dada uma nova compreensão do que era possível no caminho do desenvolvimento.
No começo da amarga primavera de 1947, ele organizou várias reuniões em Londres, para todos os que já o tinham ouvido e para outros que ainda não. Falava-lhes de uma forma nova. Disse-lhes que abandonava o sistema. Interrogou-os acerca do que desejavam, dizendo-lhes que apenas de tal base poderiam começar o caminho da lembrança de si e da consciência.
É difícil expressar a impressão criada. Por vinte anos na Inglaterra, antes da guerra, Ouspensky tinha quase que diariamente explicado o sistema. Tinha dito que tudo deveria referir-se a ele, que as coisas poderiam apenas ser compreendidas em relação a ele. Para aqueles que o haviam escutado, o sistema representava a explicação de todas as coisas difíceis, indicava o caminho para todas as coisas boas. Suas palavras e linguagem tornaram-se mais familiares que o idioma natal. Como eles poderiam ‘abandonar o sistema’?
Àqueles que ouviam com atitude positiva o que ele tinha a dizer-lhes, era como se um grande peso lhes tivesse sido tirado. Perceberam que, no caminho da evolução, o verdadeiro conhecimento deve primeiro ser adquirido e então abandonado. O que exatamente torna possível uma porta ser aberta talvez torne impossível a abertura da próxima. E alguns então pela primeira vez começaram a ter idéia de onde poderia estar aquela chave que estava faltando e que poderia levá-los ao lugar onde Ouspensky estava e eles não.
Depois disso, Ouspensky retirou-se à sua casa de campo, onde via poucas pessoas e raramente falava. Agora ele demonstrava e realizava em atos e em silêncio a mudança de consciência cuja teoria ele havia exposto por tantos anos.
A história daqueles meses não pode ser contada aqui. Mas, ao amanhecer de um dia de setembro, quinze dias antes de sua morte, após estranha e longa preparação, ele disse aos poucos amigos que estavam com ele: “Vocês devem começar outra vez. Devem fazer um novo começo. Devem reconstruir tudo por si mesmos do próprio início.”
Este era então o verdadeiro significado de ‘abandonar o sistema’. Todo sistema de verdade deve ser abandonado para que possa germinar outra vez. Ele os libertara de uma expressão da verdade que poderia ter-se tornado um dogma, mas, em vez disso, essa expressão iria gerar uma centena de formas vivas que terminaria por afetar vários aspectos da vida.
Mais importante do que tudo, ‘reconstruir tudo por si mesmo’ evidentemente significava ‘reconstruir tudo em si mesmo’, ou seja, criar realmente em si a compreensão que o sistema havia feito possível e alcançar a meta da qual ele falava - superando real e permanentemente a velha personalidade e adquirindo um novo nível de consciência.Assim, se o presente livro é tomado como uma ‘reconstrução’, é apenas uma reconstrução do conjunto de idéias que nos foi dado numa forma e linguagem particulares. Apesar de sua aparência científica, não tem importância alguma como compêndio de fatos científicos ou mesmo de uma nova maneira de apresentá-los. Qualquer significado que possa ter reside no fato de ele ser derivado, embora que de segunda mão, das reais percepções de uma consciência superior e na indicação de um caminho pelo qual tal consciência possa outra vez ser alcançada.
R.C.
Lyne, agosto de 1947
Tlalpam, abril de 1953