PROCURA DA POESIA
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Carlos Drumond de Andrade
"Quero sentir tua mão amiga,
junto a minha no prazer, na dor.
Assim, mesmo entoada a última cantiga,
um som há de restar do nosso amor."
"Que fiques boa depressa
de alergia ou qualquer dor,
mas que nunca sares dessa
doença de amar-me,Amor!"
"Este longo caminho percorrido
lado a lado, nos bons e maus momentos,
faz de nós dois um ser unificado
pelos mais fundos, ternos sentimentos"
"Flui a vida como água,
como água se renova.
Se a vida me foge, afogo-a
em cada esperança nova."
Carlos Drummond de Andrade
In Poesia Errante
junto a minha no prazer, na dor.
Assim, mesmo entoada a última cantiga,
um som há de restar do nosso amor."
"Que fiques boa depressa
de alergia ou qualquer dor,
mas que nunca sares dessa
doença de amar-me,Amor!"
"Este longo caminho percorrido
lado a lado, nos bons e maus momentos,
faz de nós dois um ser unificado
pelos mais fundos, ternos sentimentos"
"Flui a vida como água,
como água se renova.
Se a vida me foge, afogo-a
em cada esperança nova."
Carlos Drummond de Andrade
In Poesia Errante
VIDA MENOR
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início;um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Carlos Drummond de Andrade
In Sentimento do Mundo
A fuga do real,
ainda mais longe a fuga do feérico,
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória,
o eco
já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,
a mão tornando-se enorme e desaparecendo
desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,
senão inúteis,
a desnecessidade do canto, a limpeza
da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.
Não a morte, contudo.
Mas a vida: captada em sua forma irredutível,
já sem ornato ou comentário melódico,
vida a que aspiramos como paz no cansaço
(não a morte),
vida mínima, essencial; um início;um sono;
menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;
o que se possa desejar de menos cruel: vida
em que o ar, não respirado, mas me envolva;
nenhum gasto de tecidos; ausência deles;
confusão entre manhã e tarde, já sem dor,
porque o tempo não mais se divide em seções; o tempo
elidido, domado.
Não o morto nem o eterno ou o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Carlos Drummond de Andrade
In Sentimento do Mundo
A Alphonsus de Guimaraens Filho
O combate da luz
contra os monstros da sombra:
assim tua poesia
é alvorada e angústia.
Pousa a morte nos ramos
do tronco apendoado.
Mas da seiva rebentam
novos, florentes cânticos.
Não pode o céu noturno
desfazer os berilos,
os íntimos diamantes
do verso teu ao mundo,
inefável presente
não de matéria vã:
do que melhor define
o fluído sentimento,
o lancinante anseio,
a sublimada essência
do amor, cativo e livre
- teu lírico segredo.
Pois pelo amor resgatas
o pensamento lúgubre,
a dor de antigas fontes,
as perdidas paragens,
e na era absurda crias
a ligação perene
da saudade dos anjos
na chama da poesia.
Carlos Drummond de Andrade
In Amar se Aprende Amando
A dor habita em nós, o cravo a ignora.
A vida, uma gavota? Pura dança
o amor? No minueto de Lully
cabe a dificuldade de existir?
Quinta-essência do angélico, no caos,
paira a graça de Mozart sobre o abismo,
sem devassá-lo - pássaro de nuvem.
O tempo é outro metal, a comburir-nos.
Urge romper o gosto, a morna límpida,
e sangrentas estilhas do momento
passar à forma nobre da sonata.
Urge extrair do piano o som dramático.
E suscitar o diálogo patético
entre piano e violino, qual se escuta,
na penumbra da alma, as duas vozes,
um rumor de paixão se entretecendo.
Eis que a música deixa de ser pura.
Os serafins e os elfos se despedem.
A terra é lar dos homens, não de mitos.
Há que desmascarar nosso destino.
Em tatear incessante, no conflito
corpo a corpo entre o ser e a contigência,
nova música, ungida da tristeza
mas radiante de força, vem ao mundo.
Luta o homem na área desolada
de sua solidão; luta no palco
fremente de contrastes, percebendo
que pouco a pouco cerram-se os espaços
da percepção, e tudo se limita
à captação interna, de sinais
silentes, impalpáveis, invisíveis,
nunca porém tão vivos se captados.
À proporção que a dor aumenta, e em volta
nega-lhe o amor seus bálsamos terrestres,
ganha requinte a fábrica sonora
de eternizar a vida breve em arte.
Es nuss sein! É preciso! Na amargura,
na derrota do corpo, sublimada,
a canção do heroísmo e a da alegria
resgatam nossa mísera passagem.
E entreaberta a sinfonia suas palmas
imensas, a conter todo o rebanho
de perplexos irmãos, de angustiados
prospectores de rumo e de sentido.
para a sorte geral. O homem revela-se
na torrente melódica, suplanta
seu escuro nascer, sua insegura
visão do além, turva de morte e medo.
Ó Beethoven, tu nos mostraste o alvorecer.
Carlos Drummond de Andrade
In Discurso da Primavera e Outras Sombras
TEMPO DE IPÊ
Não quero saber de IPM, quero saber de IP.
O M que se acrescentar não será militar,
será de Maravilha.
Estou abençoando a terra pela alegria do ipê.
Mesmo roxo, o ipê me transporta ao círculo da alegria,
onde encontro, dadivoso, o ipê-amarelo.
Este me dá as boas-vindas e apresenta:
- Aqui é o ipê-rosa.
Mais adiante, seu irmão , o ipê-branco.
Entre os ipês de agosto que deveriam ser de outubro
mas tiveram pena de nós e se anteciparam
para que o Rio não sofresse de desamor, tumulto,inflação,mortes.
Sou um homem dissolvido na natureza.
Estou florescendo em todos os ipês.
Estou bêbado de cores de ipês, estou alcançando
a mais alta copa do mais alto ipê do Corcovado.
Não me façam voltar ao chão,
não me chamem, não me telefonem não me dêem
dinheiro,
quero viver em bráctea, racemo, panícula, umbela.
Este é tempo de ipê. Tempo de glória.
Carlos Drumond de Andrade
In Amar se aprende Amando
I
Que alguém te cante e te descante,
ficou urgente, Primavera,
para que ao menos em cantiga,
neste papel aberto às gentes,
a flor antiga se restaure.
Te cantarei em Pernambuco,
onde és cidade, e no Pará,
onde mulheres plantam malva
sob o título municipal,
e em Rondônia cantarei
a corredeira Primavera,
pois nesses nomes de lugares
e num acidente geográfico
tu pousaste como um pássaro,
modesto pássaro cinzento
de asas pretas e cauda preta,
só a lembrar, no papo branco,
extintas primaveridades.
Primavera que tanto habitas
a bráctea rósea da buganvília
( em que jardins à vista ocultos
sob a fumaça que é nosso azul
residual?)
como habitavas, parnasiana,
o soneto crônico e clássico
dos poetas consumidores
de velhos topos europeus,
é forçoso que alguém celebre
o ímpeto juvenil da Terra
mesmo poluída, desossada,
Terra assim mesmo, seiva nossa.
E te ofereço, Primavera,
a arvorezinha de brinquedo
em pátio escolar plantada
enquanto lá fora se ensina
como derrubar, como queimar,
como secar fontes de vida
para erigir a nova ordem
do Homen Artificial.
Ah, Primavera, me desculpa
se corto em meio uma floresta
latifoliada, pois tenho pressa
de correr na estrada de Santos.
Não te zangues se já não vês
em teu perene séquito lírico
aquele sininho-flor, descoberto
em longes tempos por George Gardner
e que soava só no Brasil:
foi preciso (teria sido?)
matar o verde, substituí-lo
pela neutra cor uniforme do progresso.
Primavera, primula veris,
em palavra quedas intacta,
em palavra pois te deponho
a minha culpa coletiva,
o meu citadino remorso
minha saudade de água, bicho,
terra encharcada de promessas,
e visões e asas e vozes
primitivas e eternas, como
eterno ( e amoroso) é o homem
ligado ao quadro natural.
Primavera, fiz um discurso?
Primavera, tu me perdoas?...
II
22 de setembro, mina minha.
Vamos curtir a primavera
em compact cassete tape, meu morango?
Bota aí o Botticelli
estereotransfigurado em Debussy
e vê (primeiro fecha os olhos) Simonetta
Vespucci toda flor
florentil florindamente
(bulcão?) entre cordas e resinas
da flora da Tijuca...
- Não. Prefiro o Sacre du Printemps
que transa a primavera mais primavera.
Assim, no sala-e-escuro
do sala-e-quarto conjugados
os dois ficamos respirando
um princípio de seiva e de nenúfar
enquanto a chuva - plic - tamborina
seu samba de uma nota nota só
na área de serviço.
É primavera,broto-brinco:
saiu no jornal,
a TV anunciou,
o Governo consentiu,
o Congresso aplaudiu
o comércio vendeu
arranjos de ikebana
e em algum lugar florescem três-marias
que são muitas marias, muitos nomes.
Vamos também curtir os nomes
(são presentes do povo à gente-bem):
riso-do-prado
(cadê o prado?),
amor-de-estudante
(pobre! no cursinho
que vira cursão
e invade o Brasil),
unha-de-gato
(envenenado
no Passeio Público?),
sempre-viçosa...
Isto! A esperança
pousa na balança
o seu peso-pluma.
- Você tá esquecido
da maria-branca,
da pombinha-das-almas
e da noivinha...
Asas-pseudônimos
de primavera.
(Ah, vero barato
esse de brincar
de estação das flores
de concreto-objeto!)
- Oi, depressa, vamos
semear canteiros,
preparar estacas
e mergulhões,
plantar tubérculos
de cromo -gladíolos,
túberas de dálias
e tinhorões
repicar sementeiras,
controlar lagartas,
ácaros, e trips,
dizimar pulgões.
(Ui, primavera é fogo
se levada a sério")
- Vamos pintar de verde
as áreas crestadas ,
pôr na parede
a árvore genealógica,
comprar um sábia
mecânico,
sortear
o beija-flor de beijar cimento?
É primavera, escuta o Burle Marx:
diz que havia jardins
em torno das casas,
havia matas
a cavaleiro das cidades,
florestas
onde o jacarandá e o mogno conversavam
a conversa de séculos.
(Fecharamn o bico,
chegado o eucalipto.)
Broto gentil, a primavera
será um sonho de sonhar-se
na fumaça
no grito
no sem azul deserto
das cidades mortas que se julgam vivas?
Carlos Drummond de Andrade
In Discurso de Primavera e Algumas Sombras
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventre te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura,promoção,glória,doce morte com
[sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo.Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está emtupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa,mortal,sub-reptícia.
Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteiro
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
Carlos Drummond de Andrade
In Sentimento do Mundo
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteiro
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
Carlos Drummond de Andrade
In Sentimento do Mundo
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo
[nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certezas e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade
In Farewell
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo
[nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certezas e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.
Carlos Drummond de Andrade
In Farewell
REINAUGURAÇÃO
Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmitificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza, a
exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os
descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.
Carlos Drummond de Andrade
In Farewell
Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmitificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza, a
exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os
descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.
Carlos Drummond de Andrade
In Farewell
Eu te amo porque te amo.
Não precisa ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem ( e matam)
a cada instante de amor.
Carlos Drummond de Andrade
A dança? Não é movimento
súbito gesto musical
É concentração, num momento,
da humana graça natural
[Carlos Drummond de Andrade]
Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.
[Carlos Drummond de Andrade, Além da terra, além do Céu]
TEMPO DE IPÊ
Não quero saber de IPM, quero saber de IP.
O M que se acrescentar não será militar,
será de Maravilha.
Estou abençoando a terra pela alegria do ipê.
Mesmo roxo, o ipê me transporta ao círculo da alegria,
onde encontro, dadivoso, o ipê-amarelo.
Este me dá as boas-vindas e apresenta:
- Aqui é o ipê-rosa.
Mais adiante, seu irmão , o ipê-branco.
Entre os ipês de agosto que deveriam ser de outubro
mas tiveram pena de nós e se anteciparam
para que o Rio não sofresse de desamor, tumulto,inflação,mortes.
Sou um homem dissolvido na natureza.
Estou florescendo em todos os ipês.
Estou bêbado de cores de ipês, estou alcançando
a mais alta copa do mais alto ipê do Corcovado.
Não me façam voltar ao chão,
não me chamem, não me telefonem não me dêem
dinheiro,
quero viver em bráctea, racemo, panícula, umbela.
Este é tempo de ipê. Tempo de glória.
Carlos Drumond de Andrade
In Amar se aprende Amando
AMAR,VERBO INTRANSITIVO!
Quando encontrar alguém e esse alguém
fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,
houver o mesmo brilho intenso entre eles,
fique alerta: pode ser a pessoa que você está
esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso,
se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem
d'água neste momento, perceba:
existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia
for essa pessoa, se a vontade de ficar
juntos chegar a apertar o coração, agradeça:
Algo do céu te mandou
um presente divino : O AMOR.
Se um dia tiverem que pedir perdão um
ao outro por algum motivo e, em troca,
receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras,
entregue-se: vocês foram feitos um para o outro.
Se por algum motivo você estiver triste,
se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa
sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas
e enxugá-las com ternura, que
coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.
Se você conseguir, em pensamento, sentir
o cheiro da pessoa como
se ela estivesse ali do seu lado...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda,
mesmo ela estando de pijamas velhos,
chinelos de dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...
Se você não consegue imaginar,
de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...
Se você tiver a certeza que vai ver a outra
envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção
que vai continuar sendo louco por ela...
Se você preferir fechar os olhos, antes de ver
a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.
Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
nesses sinais, deixam o amor passar,
sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.
É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: o AMOR!
Carlos Drummond de Andrade
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