"Dia após dia, desde o início dos tempos, a luz renasce a cada manhã. Os primeiros clarões da alvorada se infiltram nos jardins de flores, espalhando no coração dos botões recém-nascidos uma mensagem de esperança: "Você ainda o ignora, mas logo suas pétalas se abrirão, seu perfume se difundirá e também você se revelará em toda a sua beleza."
A alvorada derrama igualmente, como bênção, seu brilho dourado sobre os campos de trigo verdejantes e lhes murmura, outra e outra vez: Hoje vocês talvez digam a si mesmos que suas hastes, de delicado verde, nas quais o vento brinca e que encantam os olhos, são tudo que sempre terão a oferecer.
Contudo um dia, de vocês brotarão, frutos da vida que as anima, pesadas espigas carregadas de grãos. Para cada flor não desabrochada, a claridade da manhãzinha traz a promessa de um pleno desenvolvimento: aos trigos ainda não maduros, ela anuncia as riquezas da futura colheita. Assim, a cada dia, a luz da alvorada faz dançar seus raios de esperança entre as flores e as hastes de trigo.
Todavia, essa luz sempre nova não ilumina apenas os jardins, as florestas e os campos. A cada manhã, quando entreabre para nós as cortinas do sono, ela fala com nossa alma. Ela é, também para nós portadora de esperança. Não nos faz ela pressentir uma realização semelhante à do botão de rosa, ao desabrochar de alguma coisa que amadurece de noite dentro de nós, como espiga fecunda que espera, no íntimo de nosso ser, o instante de se alçar às alturas do céu.
Uma exortação, sempre a mesma, emana da luz: Veja!
Uma vez ao menos, olhe e veja!
Nós entreabiremos as pálpebras de distinguimos formas variadas. Na verdade porém, nossas sensações visuais permanecem embrionárias: assim como o botão de rosa ainda fechado, somos fundamentalmente cegos. Ainda não nos foi dado colher os frutos de uma visão perfeita, assim como não colheríamos os grãos de trigo se a espiga não se levantasse para os céus. Nossos olhos ainda não abertos, criam obstáculos a uma autêntica percepção das coisas.
Mas a luz vem, a cada manhã, de sua fonte longínqua, nos incitar a olhar melhor. Esta palavra iniciática: "Veja!", que ela faz vibrar em nossos ouvidos, oculta uma garantia sempre renovadora: em nosso modo de ver limitado, esconde-se o germe de um olhar novo, hoje meio sonolento, inconsciente do que ele será no termo de sua lenta maturação.
Essas não são palavras de pura retórica, palavras de poeta que se embriaga de sons. Também não procuro transmitir algum conhecimento de ordem metafísica, nem fruto de minhas meditações. Trata-se simplesmente de uma evidência que se impões ao olhar.
O Universo que a luz da alvorada desvela não tem a certeza de nosso pequeno mundo pessoal, muito frequentemente limitado ao leito, ao quarto em que nos despertamos. Em todo lugar, sob a abóboda azul dos céus e até os confins do horizonte, o sol nascente, adornando o mundo com seu brilho, nos dá a oportunidade de descobrir uma multidão de seres e de objetos de esplendor inaudito. Longe de iluminar apenas um recanto indispensável à satisfação de nossas necessidades cotidianas, ele torna perceptível uma imensidão sem limites. (...)
A claridade do dia, que promete ao botão de flor, fechado em si mesmo, uma eclosão ainda inconcebível, acaricia nossos olhos com uma esperança também irracional: "Existe um outro modo de ver - total iluminado - em gestão dentro de você. Se, a cada manhã estou aí novamente, é para que você saiba que um dia ele desabrochará plenamente."(...)
Ninguém poderia dizer como nos aparecerão, quando nós os contemplarmos em união com a plena consciência, esses objetos e esses seres que o olho humano hoje distingue. Contudo, uma coisa é certa:a mensagem de esperança que a luz canta quando na alvorada, vem iluminar nosso universo ainda se encontra longe de estar realizada.
Nosso poder visual é demasiadamente pouco desenvolvido para que possamos reconhecer naquela árvore a materialização da Felicidade divina. Não estamos ainda em grau de entrever a Imortal Beleza através de um rosto humano. "Ele é bem-aventurança, Esplendor e Imortalidade": no dia em que nossos olhos proclamarem essa verdade, sua capacidade latente de visão integral se terá tornado efetiva.
Nesse momento, quando nosso olhar se voltar para os céus, ele aí descobrirá a Face divina, "A Face da Graça".
Então, nos prostraremos diante de todas as coisas; diante dos animais, ou das plantas nosso sentimento de superioridade se desvanecerá, e poderemos com toda sinceridade, repetir estas palavras dos Upanixades:
"Eu me inclino diante daquele que anima o universo inteiro, tanto o menor fiapo de relva como a mais grandiosa das árvores".
Rabindranath Tagore em A morada da Paz.