Hermann Hesse

Herman Hesse



hesse


“Não creio ser um homem que saiba. 
Tenho sido sempre um homem que busca.”


“Desses acontecimentos, que ninguém percebe, 
é que se nutre a linha axial interna de nosso destino. 
A falha, a rachadura se fecham mais tarde; 
podem cicatrizar e cair no esquecimento; 
mas em nossa câmara secreta mais recôndita
nunca cessam de sangrar.”





Divino e eterno é o Espírito.
A ele, de que somos imagem e instrumento,
leva o Caminho: nosso mais profundo anelo
é tornarmo-nos ele, em sua luz brilharmos.
Porém, terrestres e mortais que somos,
sobre nós - as criaturas - inerte cai o peso.
Em verdade propícia e maternal a Natureza cálida
cuida de nós, aleita-nos a terra, prepara-nos o
berço e a sepultura...

mas não nos apazígua
- paternalmente vara-lhe o materno encanto
a imorredoura centelha do Espírito:
paternalmente faz do filho um homem,
apaga a inocência e nos acorda para a luta e a consciência.

Assim entre mãe e pai,
assim entre corpo e Espírito,
vacila o filho mais frágil da Criação
- homem de alma tremente, afeito ao sofrimento
qual nenhum outro ser, e afeito ao mais sublime:
o mais crédulo e esperançoso amor.

Dureza é seu caminho, pecado e morte o seu alimento;
muitas vezes vagueia pela treva, muitas vezes seria para ele
melhor não ter sido criado nunca.
Mas eterno sobre ele fulgura o seu anelo,
seu propósito: a luz, o Espírito.
E sentimos que a ele, ao desgraçado,
ama o Eterno com especial amor.

Por isso, a nós, erradios irmãos,
cabe, talvez mesmo na desavença, o amor;
não julgamento e ódio,
mas paciente amor.
A aceitação amorosa nos leva
mais perto do sagrado objetivo.

Hermann Hesse
In Andares - Antologia  Poética
Tradução de Geir Campos


ANTE UMA COLEÇÃO DE ESCULTURAS EGÍPCIAS





De trás das gemas dos olhos
silenciosos e eternos olhais
para nós: retardatários irmãos.
Parece que nem ânsia nem amor
conhecem vossas brilhantes feições polidas.
Soberanos e aos astros irmanados,
um dia incompreendidos,
entre templos vagastes.
Como um distante olor divino, a santidade
em vossos rostos ainda hoje sopra,
a dignidade rodeia-vos os joelhos.
Vossa beleza respira serena:
na eternidade tendes vossa pátria.

Mas nós, irmãos mais novos,
sem deuses tropeçando numa vida enganosa,
vemos abrir-se avidamente às nossas almas
todos os torvelinhos da paixão,
cada saudade em brasa.
Nossa meta é a morte,
nosso credo a inconstância;
não há lapso de tempo que se contraponha
à nossa efígie súplice.
E contudo trazemos nós também
o estigma de um secreto vínculo espiritual 
em fogo na alma
nós pressentimos deuses e sentimos
perante vós, silenciosas imagens da antiguidade,
amor sem medo. Nos vedes 
sem ódio a nenhum ente, nem à morte:
a sofrer e o morrer
não nos abalam a alma,
pois aprendemos a amar mais profundamente.

É do pássaro o nosso coração,
e do mar  e do bosque; aos miseráveis
e aos escravos tratamos como irmãos,
e à pedra e ao animal também chamamos com amorosos 
                                                                          nomes.

Sendo assim as imagens 
do nosso efêmero ser
não nos hão de sobreviver em dura pedra:
sorridentes se desvanecerão
e em transitória poeira de sol
novos encantos e perpétuas  ressuscitarão.

Hermann Hesse
In Andares - Antologia Poética
Tradução Geir Campos



NA RELVA DEITADO


Então tudo isto é mágica de flores,
é campina estival com seu frouxel de cores,
ampla ternura de céu, zumbir de abelhas?
Tudo isto é sonho de algum suspiroso deus?
Forças de instinto a clamar pela redenção?
E na distância a linha da montanha
temerária e formosa a alterar-se no azul,
também é espasmo só?
É só selvagem tensão da natureza em fermento?
É só dor, só tormento, mera agitação
num tatear sem fim, sem sentido e sem glória?
Ah, não! Longe de mim, sonho ruim
das aflições do mundo!
A luz da tarde picam-te nuvens de mosquitos,
atordoam-te aves agourentas,
sopra de ti um vento
que com adulação me esfria o rosto.
Longe de mim, velhíssima dor do homem! 
Pode ser tudo tormento,
pode ser tudo sombra e aflição
- mas esta hora  doce de sol,  não,
nem este aroma de trevo encarnado,
nem este intenso e terno bem que estou sentindo
no coração!

Hermann Hesse
In Andares - Antologia Poética
Tradução de Geir Campos

A medo fala o relógio com a teia de aranha na parede,
com força o vento bate na porta da loja,
queimadas até em baixo e escorridas de cera
então minhas bruxuleantes velas,
vinho algum mais no copo,
em todos os cantos sombras
a estender para mim os dedos longos.
Como nos tempos da infância,
respiro a custo e entrecerro meus olhos,
o medo prende-me agachado na cadeira;
mas já não vem mãe nenhuma,
nenhuma criada ralhona e boa,
quebrar gostosamente o encantamento e iluminar-me
                                                      com novo conforto. 
Demoro-me agachado em meio às trevas,
escuto o vento nas telhas e junto aos muros a morte
a fiar com enregelados dedos,
sob o tapete ouço o ranger da areia:
quisera vê-la e pegá-la, arregalo  os olhos,
meu olhar cai no vazio e à distância
escuto o lento assobio dos seus lábios zombeteiros.
Vou tateando em direção à cama: dormir, que bom,
                                                                      dormir! 
Mas o sono se fez um pássaro assustado,
difícil de pegar e de reter, tão fácil de esmagar,
e se afasta a piar, com amarga ironia,
ruflando as asas para o vento o carregar.

Hermann Hesse
In Andares
tela Northern Harrier Hawk


LUZ DA ALVORADA






Pátria, infancia, hora da manhã da vida
muitas vezes perdida e deslembrada:
tardia mensagem me vem de ti,
a reflorir do que mais fundo estava
soterrado no âmago de minha alma
- ó doce luz, fonte ressuscitada!

Entre o outrora e agora, a vida toda
que se havia por orgulhosa e rica,
não conta mais: volto a escutar, absorto,
o tão antigo sempre e sempre novo
cantar da fonte dos contos de fadas,
infantis cantinelas olvidadas.

Acima de tudo, com teu clarão
vais removendo o pó e a confusão
e o esforço da ambição irrealizada
- ó fonte límpida, ó luz da alvorada!

Hermann Hesse
In Andares 
tela Giovanni Dalessi

RABISCO NA AREIA




Que encantamento e beleza
sejam brisa e calafrio,
que o delicioso e bom
tenha escassa duração
- fogo de artifício, flor,
nuvem, bolha, olhar
de mulher no espelho, e tantas
outras coisas fabulosas
que, mal descobrem, somem -
disso, com pena, sabemos.
Ao que é permanente e fixo
não queremos tanto bem:
gemas de gélido fogo,
ouros de pesado brilho,
por não falar nas estrelas
que tão altas não parecem
transitórias como nós
e não calam fundo na alma.
Não parece que o melhor,
mais digno de amor, se inclina
para o fim, beirando a morte,
e o que mais encanta - notas
de música, que ao nascerem -
são brisas, são águas, caças
feridas de leve mágoa.
que nem pelo tempo de uma
batida do coração
deixam-se reter, prender.
Som após som, mal se tocam,
já se esvaem, vão-se embora.
Nosso coração assim
leal e fraternamente
se entrega ao fugaz , ao vivo,
não ao seguro e durável.
Cansa-nos o permanente
- rochas, mundo estelar, jóias -
a nós, transmutantes, almas
de ar e bolhas de sabão,
cingidos ao tempo, efêmeros
a quem o orvalho na rosa,
o idílio de um passarinho,
o fim de um painel de nuvens,
fulgor de neve, arco-íris,
borboleta que esvoaça,
eco de riso que só
de passagem nos alcança,
pode valer uma festa
ou razão de dor.Amamos
o que é semelhante a nós,
e entendemos os rabiscos
que o vento deixa na areia.

Hermann Hesse
In Andares    

MAGNÍFICO MUNDO




Se velho ou jovem, é sempre assim que sinto:
Na noite uma montanha, uma mulher silenciosa
ao balcão,
Ao luar a leve curva do branco caminho,
De saudades arranca-me do peito o coração.

Oh!Mundo ardente, mulher branca ao balcão,
Distante o rolar do trem, no vale o uivar do cão.
Oh! Como mentis, como me enganais, que amar-
        go,
Apesar de tudo és meu delírio, meu mais doce tor-
       por.

Inúmeras vezes tentei o caminho da terrível "ver-
      dade"
Onde câmbio e lei, assistente e moda dominam,
Porém só, sempre escapei, desiludido mas em
      liberdade
Para lá onde o sonho e a abençoada loucura fer-
      vilham.

Na árvore vento cálido da noite, morena cigana,
Mundo de louca saudade e perfume de poesia.
Magnífico mundo a quem sempre me entreguei,
Onde tuas faíscas   me  fulminam  e  tua  voz  me
       chama.

Hermann Hesse
In Caminhada

CEMITÉRIO NO CAMPO




Sobre cruzes tortas, colina de hera,
Sol ameno, aroma e zumbir de abelha.

Felizes vós, aqui acolhidos
Se ajustam ao coração da boa terra,

Felizes vós, filhos anônimos, retornados
Docilmente descansais no colo materno!

Mas, ouvi, do esvoaçar da abelha e do peito
Me canta a ânsia de viver e de ficar,

Desses profundos sonhos enraizados
De seres longamente apagados

Brota o impulso à luz,
Ruínas humanas, enterradas no escuro,

Se transformam, exigem  presença,
E a terra-mãe, como rainha

Nos impulsos do nascer se contorce.
Meigo ninho de paz na cova do fosso,

Não pesa mais que um sonho na noite.
Fumaça cinzenta é só o sonho da morte
Sob a qual o fogo da vida chameja.

Hermann Hesse
In Caminhada
foto 

NOITE EXAUSTA






Morde o vento da noite
uma queixa abafada
pelas folhas. No pó
caem gotas pesadas.

Nos rostos muros brotam
musgos e samambaias.
Anciãos silenciosos
se agacham nos umbrais.

Mãos retorcidas pousam
sobre os joelhos duros,
entregues ao descanso
enquanto vão murchando.

Enormes gralhas voam
por sobre o cemitério.
Samambaias e musgos
nos rasos morros medram.

Hermann Hesse
In Andares

MUNDO SONHO NOSSO




Em sonho, à noite, cidades
e gentes, castelos no ar,
monstros - tudo, bem o sabes,
do escuro da alma a brotar,
tudo é imagem e obra tua,
és tu próprio, em teu sonhar.

Vai à cidade, de dia,
olha as ruas, rostos, nuvens,
e hás de ver maravilhado
que é tudo teu: és o autor!
Tudo que ante os teus sentidos
avulta e vive cem vezes
é bem teu, fundo em ti cala,
sonho que tua alma embala.

Andando sempre em ti mesmo,
ora a estreitar-te, ora a abrir-te,
és o que fala e o que escuta,
o que cria e  o que destrói.
Velha e esquecida magia
sagradas miragens fia,
e o mundo com seu portento
vive pelo teu alento.

Hermann Hesse
In Andares
tela Xi Pan

NUVENS DO ENTARDECER




O que um poeta imagina e burila,
e anota num livrinho, em verso e rima,
a alguns pode sem nexo parecer;
mas Deus entende e acata com prazer.

Também  ele, que cuida do universo,
de vez em vez é poeta também:
quando repicam os sinos da tarde,
como em sonho, toma nas mãos o ar
e, para a festa do final do dia,
faz lindas nuvens de ouro  tênues, muitas,
a debruar o perfil das montanhas
- espuma carmesim na pompa do crepúsculo.
Uma e outra, que lhe saem melhores,
por algum tempo ele conduz e guarda,
a fim de que, feitas de quase nada,
pairem no céu em contente sorrir.
A que parece um vão jogo de rima
logo tem algo de magia e imã
a atrair a alma humana
em nostalgia e oração a Deus.
Então a rir o Criador desperta
do breve sonho, a brincadeira esfria,
e da fresca distância desabrocha
plena de paz a noite.
Assim é que da pura mão de Deus,
mesmo de brincadeira, toda imagem
brota perfeita, formosa e feliz
como poeta  algum imaginou jamais.
Possa o teu canto terrenal valer
como um acorde musical de sinos,
e que das mãos de Deus, cheias de luz,
brotem nuvens lá em cima.

Hermann Hesse
In Andares 

CHINÊS




De uma opalina brecha entre nuvens, o luar
conta a custo as pontudas sombras dos bambus;
pinta o reflexo da ponte com a corcova de uma gato
redonda e límpida sobre as águas.

São imagens que ternamente amamos
sobre o fundo apagado do mundo e da noite,
com encanto a flutuar, por encanto traçadas
e já riscadas pela hora seguinte.

Sob a amoreira o poeta embriagado,
que maneja o pincel como segura o copo,
descreve a noite de lua que propícia o empolga,
suaves sombras e luzes que passam.
Os traços rápidos do seu pincel
desenham nuvens e a lua e todas as coisas
que em sua embriaguez seguem passando,
para poder cantá-las tão fugazes,
para animá-las com sua ternura,
para doar-lhes alma e permanência.

E elas passam a ser intransitórias.

Hermann Hesse
In Andares 

25/03/12


VALSA BRILHANTE




Na sala, música de Chopin:
selvagem música arrebatada.
Brancas de tempo, as javelas brilham;
orna o piano murcha  grinalda.

Tu ao piano, ao violino eu,
sem parar vamos tocando, enquanto
ansiamos por ver qual de nós dois
será o primeiro a quebrar o encanto.

Qual de nós dois a meio compasso
detém-se e as luzes de si desvia:
qual dos dois faz primeiro a pergunta
que em resposta se apagaria.

Hermann Hesse
In Andares
Tradução Geir Campos
tela Nikolai Rimsky

RELÂMPAGOS






Relâmpagos em febre ao longe.
Pálida e tímida estrela
de estranho clarão cintila
o jasmim do teu cabelo.

Ao teu mágico poder
difícil e inconstelado,
trazemos beijos e rosas
- ó noite densa e abafada!

Beijos sem sorte e sem fogo
dos quais mal nos lamentamos;
rosas que em lúgubre dança
murchas pétalas derramam.

Noite sem pingo de orvalho!
Amor sem glória e sem pranto!
Sobre nós paira um mau tempo
que tememos e anelamos.

Hermann Hesse
In Andares
tela  Anonymous

PELOS CAMPOS





Pelos céus passam as nuvens,
sobre os campos sopra o vento,
pelos campos erra o filho
perdido de minha mãe.

Pelas ruas rolam folhas,
sobre as árvores há pássaros.
Sobre as montanhas, em algum lugar
minha pátria há de estar.

Hermann Hesse
In Andares
tela  Joseph Mallord William Turner

REGRESSO




De regresso de uma viagem longa,
acho  em meu quarto a correspondência a esperar-me:
sento-me, abro aflito os envelopes,
e  o meu alento embaça o recinto gelado.

Ah, gente estranha, que vagueia e que procura
como eu: que me escreveis em tantas cartas?
Se não restassem noite e enigma por trás de tudo,
como seria a vida desolada e horrível!

Vossas cartas empilho na escura lareira:
para o que indagam todas, não tenho resposta...
Aquecei-vos comigo, com as chamas que elevam-se animadas!
Alegrai-vos comigo, com o dia que vem com o amanhã!

Hostil e frio é o mundo murado à nossa volta:
só o nosso coração parece aberto ao sol e às coisas boas.
Ah, como treme em nosso peito a assustada centelha
que ainda assim sozinha sobrevive aos espectros do mundo!

Hermann Hesse
In Andares


OUTONO



Pássaros, que nos ramos
entoais vosso canto
pelo crestado bosque:
pássaros, aviai-vos!

Já vem o vento que sopra,
já vem a morte que ceifa,
já vem o cinério fantasma que gargalha
a enregelar-nos  o coração
- e o jardim perde toda a sua pompa,
e a vida perde todo o seu fulgor.

Amados pássaros entre as folhagens,
irmãozinhos queridos,
permiti que cantemos e nos alegremos:
nós já vamos ser pó!

Hermann Hesse
In Andares

“...podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se.”


“Sempre é bom termos consciência de que dentro de nós há alguém que tudo sabe...”


“Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente em mim. Por que isso me era tão difícil?”


“Quando alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que tal proporciona, mas a própria pessoa; seu próprio desejo e sua própria necessidade o conduzem a isso.”


"Há, por exemplo, entre as mariposas, certa espécie noturna da qual as fêmeas são em número muito mais reduzido do que os machos. As mariposas se reproduzem da mesma maneira que todos os outros insetos: o macho fecunda a fêmea, e esta põe ovos. Quando se captura uma dessas fêmeas (e numerosos naturalistas já comprovaram o fato), os machos vão dar ao lugar onde ela se encontra prisioneira, depois de voarem vários quilômetros de distância, viajando horas e horas através da noite. Presta atenção! A vários quilômetros de distância os machos sentem a presença da única fêmea existente nas imediações. Tentou-se buscar uma explicação para o fato, mas é muito difícil de explicar. Talvez os machos tenham o sentido do olfato extraordinariamente desenvolvido, como os bons cães de caça, que conseguem achar e seguir um rastro imperceptível. Compreendes? A Natureza está cheia de fatos como este, que ninguém consegue explicar. Mas imagino que se, entre essas mariposas, as fêmeas fossem tão freqüentes quanto os machos, estes talvez não tivessem um olfato tão fino. Se o têm é porque se viram na necessidade de exercitá-lo a tal ponto e a intensificar sua sensibilidade. Quando um animal ou um homem orienta toda a sua atenção e toda a sua força de vontade para determinado fim, acaba por consegui-lo. O mesmo acontece com o que antes dizíamos. Se observarmos uma pessoa com suficiente atenção, acabaremos por saber mais a seu respeito do que a própria pessoa.
(...) É necessário perguntar-se sempre, duvidar sempre. Mas a coisa é muito simples. Se uma dessas mariposas noturnas de que falamos pretendesse orientar toda a sua vontade em direção a uma estrela ou a outro fim semelhante, é claro que nada conseguiria. Mas nem sequer pretende isso. Busca apenas o que tem para ela um sentido e um valor, algo que lhe é necessário e de que não pode prescindir. E é então precisamente quando consegue também o inacreditável: desenvolver um sexto sentido, que só ela possui entre todos os animais. Nós, os homens, temos um campo de ação muito mais vasto e interesses mais amplos do que os animais. Mas também nós nos achamos inscritos num círculo relativamente pequeno e não conseguimos ultrapassá-lo. Posso imaginar muitas coisas, imaginar, por exemplo, que meu maior desejo seria chegar ao Pólo Norte ou algo semelhante; mas só poderei querer isso com suficiente intensidade e realizar esse desejo quando ele realmente existir em mim e todo o meu ser se achar penetrado por ele. Quando isso acontece, quando intentas algo que te é ordenado de dentro do teu próprio ser, acabas por consegui-lo e podes atrelar tua vontade como se fosse um animal de tiro. Se eu me esforçasse agora no sentido de que, por exemplo, o nosso pároco não usasse óculos, não haveria de conseguir nada. Seria apenas um jogo. Mas, quando no outono passado, surgiu em mim o firme propósito de mudar de lugar na classe, tudo aconteceu maravilhosamente. Logo apareceu um aluno, que até então estivera doente e cujo nome começava por uma letra anterior à inicial do meu, e como alguém devesse dar-lhe o lugar nos primeiros bancos, fui eu, desde logo, quem lhe cedeu o lugar, precisamente porque minha vontade já se encontrava preparada para aproveitar a primeira ocasião."


“A maioria das pessoas vive também em sonhos, mas não nos próprios, e aí é que está a diferença.”


“Não creio que se possam considerar homens todos esses bípedes que caminham pelas ruas, simplesmente porque andam eretos ou levem nove meses para vir à luz. Sabes muito bem que muitos deles não passam de peixes ou de ovelhas, vermes ou sanguessugas, formigas ou vespas.”


“Quando me comparava com os demais, sentia-me muitas vezes orgulhoso e satisfeito comigo mesmo, e em outras tantas deprimido e humilhado. Ora me acreditava um verdadeiro gênio, ora fraco do juízo. Não me era possível compartilhar a vida e as alegrias dos outros rapazes de minha idade, e às vezes reprovava asperamente o meu isolamento e sentia profunda tristeza, crendo-me definitivamente afastado de todos os meus semelhantes, com todas as portas da vida fechadas irrevogavelmente para mim.”


“Não há porque te comparares com os demais, e se a natureza te criou para morcego, não deves aspirar a ser avestruz. Às vezes te consideras por demais esquisito e te reprovas por seguires caminhos diversos dos da maioria. Deixa-te disso. Contempla o fogo, as nuvens, e quando surgirem presságios e as vozes soarem em tua alma, abandona-te a elas sem perguntares se isso convém ou é do gosto do senhor teu pai ou do professor ou de algum bom deus qualquer. Com isso só conseguimos perder-nos, entrar na escala burguesa e fossilizar-nos.”


“Não devemos temer nem julgar ilícito nada do que nossa alma deseja em nós mesmos.”


“A ave saiu do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo.”


“A única realidade é aquela que se contém dentro de nós, e se os homens vivem tão irrealmente é porque aceitam como realidade as imagens exteriores e sufocam em si a voz do mundo inteiro. Também se pode ser feliz assim; mas quando se chega a conhecer o outro, torna-se impossível seguir o caminho da maioria. O caminho da maioria é fácil, o nosso é penoso. Caminhemos.”


“Esta é minha fraqueza, meu caro Sinclair, pois às vezes percebo que não deveria sentir tais desejos, que são um luxo e uma fraqueza. Seria mais digno e mais acertado estar simplesmente à disposição do destino, sem aspirações de qualquer ordem. Mas não posso, é a única coisa que não posso fazer. Talvez tu o consigas um dia. É muito difícil, é o único verdadeiramente difícil. Já sonhei em consegui-lo, mas não o consigo realizar, me dá medo. Não posso decidir-me a ficar tão desnudo e tão só em meio da vida; também eu sou um pobre cão fraco, que necessita de um pouco de calor e de alimento e gosta de sentir-se de vez em quando entre seus semelhantes. Aquele que verdadeiramente só quer seu destino já não tem semelhantes e se ergue solitário sobre a terra, tendo ao seu lado somente os gélidos espaços infinitos.”


“Eu só esperava que meu destino se me apresentasse com uma nova imagem.”


"Todos os homens buscavam a 'liberdade' e a 'felicidade' num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória."


"Nunca se chega ao porto. Mas quando duas rotas amigas coincidem, o mundo inteiro então nos parece o anelado porto."


“O que hoje existe não é comunidade, é simplesmente rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais...E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo.”


Pela janela, me desperta a lua:
grossos de sono forcejam meus olhos
e no magnífico palor pressinto
                    a precipitação de novos sonhos.                   

Cá e lá um clarão e uma brancura,
e por trás da azulada escuridão
longos trilhos de vidros espelhados,
velas bentas ...

De claro e escuro o espírito do sonho
vai silentes palácio construindo,
cepo e machado,noiva de grinalda,
festejos,bebedeiras,bailarinas.

Então destaca-se encantada a alma
sobre um mundo real que apodreceu
e vira-se feliz para o outro lado
a deslizar num império que é seu.

Hermann Hesse
In Andares




VALSA BRILHANTE




Na sala, música de Chopin:
selvagem música arrebatada.
Brancas de tempo, as javelas brilham;
orna o piano murcha  grinalda.

Tu ao piano, ao violino eu,
sem parar vamos tocando, enquanto
ansiamos por ver qual de nós dois
será o primeiro a quebrar o encanto.

Qual de nós dois a meio compasso
detém-se e as luzes de si desvia:
qual dos dois faz primeiro a pergunta
que em resposta se apagaria.

Hermann Hesse
In Andares
Tradução Geir Campos
tela Nikolai Rimsky




Que encantamento e beleza
sejam brisa e calafrio,
que o delicioso e bom
tenha escassa duração
- fogo de artifício, flor,
nuvem, bolha, olhar
de mulher no espelho, e tantas
outras coisas fabulosas
que, mal descobrem, somem -
disso, com pena, sabemos.
Ao que é permanente e fixo
não queremos tanto bem:
gemas de gélido fogo,
ouros de pesado brilho,
por não falar nas estrelas
que tão altas não parecem
transitórias como nós
e não calam fundo na alma.
Não parece que o melhor,
mais digno de amor, se inclina
para o fim, beirando a morte,
e o que mais encanta - notas
de música, que ao nascerem -
são brisas, são águas, caças
feridas de leve mágoa.
que nem pelo tempo de uma
batida do coração
deixam-se reter, prender.
Som após som, mal se tocam,
já se esvaem, vão-se embora.
Nosso coração assim
leal e fraternamente
se entrega ao fugaz , ao vivo,
não ao seguro e durável.
Cansa-nos o permanente
- rochas, mundo estelar, jóias -
a nós, transmutantes, almas
de ar e bolhas de sabão,
cingidos ao tempo, efêmeros
a quem o orvalho na rosa,
o idílio de um passarinho,
o fim de um painel de nuvens,
fulgor de neve, arco-íris,
borboleta que esvoaça,
eco de riso que só
de passagem nos alcança,
pode valer uma festa
ou razão de dor.Amamos
o que é semelhante a nós,
e entendemos os rabiscos
que o vento deixa na areia.

Hermann Hesse
In Andares  

NUVENS DO ENTARDECER




O que um poeta imagina e burila,
e anota num livrinho, em verso e rima,
a alguns pode sem nexo parecer;
mas Deus entende e acata com prazer.

Também  ele, que cuida do universo,
de vez em vez é poeta também:
quando repicam os sinos da tarde,
como em sonho, toma nas mãos o ar
e, para a festa do final do dia,
faz lindas nuvens de ouro  tênues, muitas,
a debruar o perfil das montanhas
- espuma carmesim na pompa do crepúsculo.
Uma e outra, que lhe saem melhores,
por algum tempo ele conduz e guarda,
a fim de que, feitas de quase nada,
pairem no céu em contente sorrir.
A que parece um vão jogo de rima
logo tem algo de magia e imã
a atrair a alma humana
em nostalgia e oração a Deus.
Então a rir o Criador desperta
do breve sonho, a brincadeira esfria,
e da fresca distância desabrocha
plena de paz a noite.
Assim é que da pura mão de Deus,
mesmo de brincadeira, toda imagem
brota perfeita, formosa e feliz
como poeta  algum imaginou jamais.
Possa o teu canto terrenal valer
como um acorde musical de sinos,
e que das mãos de Deus, cheias de luz,
brotem nuvens lá em cima.

Hermann Hesse
In Andares 

Pé ante pé na escuridão vou pondo:
imensa e mansa me rodeia a noite.
Junto ao úmido muro vou molhando,
no musgo aljofarado mão e rosto.

Em sombra contra os ares e as estrelas
o pé de acácia embala-se;
no longe reluzem luzes
e o perto eu mal consigo perceber.

Com seu mágico fio, o amor faz vir 
até meu coração toda a distância:
as Plêiades e a Estrela-Polar chamam
ao céu os seus irmãos.

Ao mundo todo eu me sinto ligado,
a toda forma de vida eu me abro;
de novo achei a estrada
que me integra no plano do universo.

Hermann Hesse
In Andares 


Embora a tarde fria e triste esteja,
e a chuva rumoreje,
sem saber quem me escuta, o meu cantar
em tempo entôo ainda.

Embora o mundo se asfixie em guerra e medo,
nalgum lugar,
em segredo, sem que ninguém o veja,
o amor flameja ainda.

Hermann Hesse
In Andares

Tílias e castanheiros seculares
sussurram lentos, respirando o morno vento.
Rebrilha o chafariz e de bom grado
cede ao sopro do ar. Sobre as copas das árvores
os pássaros calam-se quase todos.
Lá fora a rua está quieta ao sol a pino.
Na relva estiram-se cães sonolentos.
Carros de feno chiam na distância quente.

Nós nos sentamos longamente à sombra: velhos,
um livro ao colo, baixando o olhar deslumbrado,
pelo verão docemente embalados,
e intimamente a pensar nos que já se foram
e para os quais não há mais verão nem inverno,
e que contudo pelos átrios e caminhos
ainda os sentimos invisíveis junto a nós
lançando a ponte que liga aqui e o além.

Hermann Hesse
In Andares
tradução Geir Campos
arte Hermann Hesse

A trajetória de nossa vida pode parecer definitivamente marcada por certas situações. Nossa vida, entretanto, conserva sempre todas as possibilidades de mudança e conversão que estiverem ao nosso alcance. E tais possibilidades são tanto maiores, quanto mais abrigarmos em nós de infância, de gratidão, de capacidade de amar." 

Ao amornado vento da montanha balança-se a figueira
de novo contorcendo como cobras os galhos conturbados;
sobre o escalvado cume a lua-cheia sobe para um festim
de solidão, a povoar de sombras o espaço; a luz da lua,
entre os barcos de nuvens que deslizam, distraída conversa
consigo mesma, enfeitiçando a noite sobre o vale do lago
e transformando-a em silente imagem da alma e da poesia
para no fundo do meu coração a música acordar.
Num incontido assomo de saudade minha alma então eleva-se,
luta contra o destino, pressentindo que lhe falta uma coisa,
brinca com o sonho da felicidade, remoendo cantigas:
quisera começar tudo de novo, de novo o já longínquo
ardor da juventude restaurar na frigidez do agora,
quisera andar à toa e cortejar inclusive uma estrela,
tenutizar o repique dos sinos de vagantes desejos...
Fecho a janela com hesitação e acendo o lampião,
vejo em branco na cama os travesseiros esperando por mim,
em branco a lua e o mundo e a flutuante poesia das nuvens,
ao amornado vento da montanha, sobre às coisas de costume
e, até pegar no sono, ouço a canção da minha juventude.

Hermann Hesse
In Andares
tradução Geir Campos


MUNDO SONHO NOSSO




Em sonho, à noite, cidades
e gentes, castelos no ar,
monstros - tudo, bem o sabes,
do escuro da alma a brotar,
tudo é imagem e obra tua,
és tu próprio, em teu sonhar.

Vai à cidade, de dia,
olha as ruas, rostos, nuvens,
e hás de ver maravilhado
que é tudo teu: és o autor!
Tudo que ante os teus sentidos
avulta e vive cem vezes
é bem teu, fundo em ti cala,
sonho que tua alma embala.

Andando sempre em ti mesmo,
ora a estreitar-te, ora a abrir-te,
és o que fala e o que escuta,
o que cria e  o que destrói.
Velha e esquecida magia
sagradas miragens fia,
e o mundo com seu portento
vive pelo teu alento.

Hermann Hesse
In Andares
tela Xi Pan


CHEIRO DE OUTONO




Mais uma vez é um verão que nos abandona,
agonizando num temporal atrasado:
tranquila a chuva rumoreja, enquanto um cheiro
amargo e tímido vem do bosque molhado.

Na relva pálida a liliácea se retesa
em meio a grande profusão de cogumelos;
tem-se a impressão de que se esconde e se retrai
o nosso vale, ontem ainda imenso e belo.

Retrai-se e cheira a timidez e a amargura
o mundo, com toda a claridade perdida:
prontos, olhamos o temporal atrasado,
pois acabou-se o sonho de verão da vida!

Hermann Hesse
In Andares
tela de Dmitry Spiros


MELANCOLIA





À morte se consagram hoje todas
as que ainda ontem para mim ardiam:
uma por uma, vão caindo as flores
da árvore da melancolia.

Eu as vejo caindo, como cai
a neve em flocos sobre a minha senda:
já não se ouvem passos ressoando,
acerca-se o grande silêncio.

O céu já não tem mais nenhuma estrela,
nem mais o coração nenhum amor:
há silêncio na cinza da distância,
o mundo está velho  e sem cor.

Quem é que pode ter o coração
a salvo,neste tempo de porfia?
Uma por uma, vão caindo as flores
da árvore da melancolia.

Hermann Hesse
In Andares
tela Gene McInerne

TEMPO DE CHUVA




Há longo tempo ouço cantar a chuva,
por muitos dias e por muitas noites:
qual se pairasse a murmurar sonhando
envolta em som eternamente igual.

Igual me soava outrora em longes terras
dos chinos a música deslizante:
como um cantar de grilo, intenso e fino,
mas tão prenhe de encanto a cada instante.

Murmúrio de chuva, cantar de chinos,
som de cascata, marulho de mar
- que força é esta com que me atrai sempre
vossa magia pelo mundo afora?

Tendes por alma o som imperecível
que não conhece tempo nem mudança,
cuja pátria evadimos no passado
e o coração nos queima na lembrança.

Hermann Hesse
In Andares
foto por W.R. van Straalen

TODAS AS MORTES


Já morri todas as mortes,
todas as mortes quero tornar a morrer:
morrer a morte de madeira na árvore,
morrer morte de pedra na montanha,
morte de terra no chão,
morte de folha na relva a crepitar no verão,
e a pobre morte de sangue no ser humano.

Flor quero ser quando nascer de novo,
árvore e relva quando de novo nascer,
peixe e gamo, pássaro e borboleta,
e dessas formas todas
o anelo irá conduzindo meus passos
para as dores mais altas
- as dores do ser humano.

Ó arco tenso a vibrar,
quando o punho do furioso anelo
os dois pólos da vida
tenta envergar até que os dois se toquem!
Mais uma vez e muitas vezes mais,
da morte ao nascimento, me perseguirás
na dolorosa via da materialização
- maravilhosa via da materialização.

Hermann Hesse
In Andares

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